1.Breve Histórico
A digressão que se encaminha remonta seu início em meados da década de 1930. Mas o objetivo não é aborrecer o leitor com um histórico enfadonho.
Nos comprometemos a construir o raciocínio retrospectivo somente para delinear o contorno dos modelos setoriais de energia – de acordo com diferentes momentos vividos no passado – e assim esclarecermos seus reflexos na formação dos preços do Setor Elétrico Brasileiro (“SEB”). Sejamos sintéticos, portanto.
Até a década de 1930, o SEB se desenvolveu sob o jugo do capital privado, especialmente daquele de origem externa às fronteiras do Brasil.
À época, inexistia regulação federal específica para tais atividades, e, por isso, a sua exploração se encontrava vinculada às aprovações das instâncias municipais.
A partir de Vargas, todavia, se passou a considerar a indústria elétrica como estratégica e soberana aos desígnios do desenvolvimento nacional.
Destarte, como consequência da política intervencionista do Estado Novo e, posteriormente, do estado de exceção militar, o segmento passou a ser marcado por forte predomínio do capital público nacional, inclusive com a estatização de empresas presentes na área de energia àquele momento.
Entre as décadas de 1930 e de 1980, dessa forma, o Estado se fez atuante, quase de forma isolada, no desenvolvimento dessa indústria.
Como característica típica, é válido assentar que o setor elétrico se fundamentou na instituição de monopólios verticalizados e tarifas reguladas pelo custo do serviço.
O que se verificou nesse primeiro recorte ora narrado, foi que, até 1970, houve crescimento ordenado do setor, com ampliação do acesso aos consumidores e aprimoramentos contínuos da qualidade do serviço oferecidos para a sociedade.
Contudo, o grande choque do petróleo que se impôs em 1979, foi um golpe de difícil assimilação para o setor de energia, que começou a dar sinais de enfraquecimento em sua eficiência econômica, em razão, a priori, de fatores exógenos.
Não por outra, houve restrições à captação de recursos, somando-se ao elevado endividamento das empresas atuantes na área.
Por seu turno, o Estado, na tentativa de impedir maiores efeitos da crise internacional sobre a economia, optou por utilizar o segmento de infraestrutura como instrumento de política pública.
Assim, congelou tarifas, com a intenção de evitar a disparada inflacionária (soa familiar)?
No início dos anos 1980, a crise econômica brasileira já começava a demonstrar sua face de maior severidade.
E ainda estavam por vir sucessivas políticas intervencionistas (que, diga-se de passagem – ainda “emplacam”, por vezes, até os dias de hoje).
Inevitavelmente, nessas circunstâncias, passou-se a admitir-se então, que o Estado não tinha condições de arcar integralmente com os investimentos necessários ao desenvolvimento dos setores estruturantes, em especial o de energia.
Sendo assim, no início da década de 1990, deu-se início à reestruturação do Estado, com viés liberal, compatível com a nova ordem constitucional econômica, consagrada nos art. 170 e seguintes da Constituição de 1988.
As primeiras reformas do setor elétrico respaldaram-se em três princípios basilares: i) desestatização; ii) desverticalização; e iii) eficientização.
Em comunhão, esses pilares voltavam-se para criar ambiente atraente ao investimento privado, mediante o regime jurídico de concessões.
Desnecessário dizer que, em concomitante, o citado regime tarifário do preço pelo custo (que poderá ser abordado oportunamente em outro ensaio) foi paulatinamente transmutado, em linha com a evolução legislativa – abrindo portas para um paradigma, digamos, de característica predominantemente concorrencial. Melhores esclarecimentos logo adiante.
E foi assim, a partir da instauração do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (“RESEB”) que, no ano de 1996, se fincou o objetivo de aumentar a dita competitividade.
Destaca-se, por oportuno, a criação da Agência Reguladora, a ANEEL, por meio da Lei nº 9.427/96, instituída sob a forma de autarquia especial.
Sequencialmente, em 1998, nos termos da Lei nº 9.648, houve a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), responsável pela coordenação e pelo controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica, assim como pelo planejamento dos despachos centralizados das usinas do sistema.
Em 2004, a partir da promulgação das Leis n°10.847 e 10.848, foi concretizada outra reforma e, como consequência, se deu a instituição do Novo Modelo do Setor Elétrico que, entre as mais significativas melhorias, teve como objetivo garantir a confiabilidade do SEB, a partir do suprimento adequado de energia elétrica associado à modicidade tarifária.
Entre os pontos igualmente destacáveis, releva comentar, a desverticalização das atividades no SEB, a segregação dos ambientes de comercialização (regulado e livre) e, quanto a formação dos preços (que é mote principal deste artigo), consolidou-se firmemente o preço por modelo. Vale uma detida explicação ao que isto concerne.
2. Preço por Modelo
O nosso processo de formação de preço se dá por modelos computacionais. Dessa feita, o preço de curto prazo da energia é calculado com base no custo marginal de operação (CMO).
O ONS utiliza, além dos tradicionais modelos “Decomp” e “Newave”, as adequações relativamente recentes do “Dessem”.
Portanto, é válido afirmar que, no Brasil, a cadeia de modelos extraídos dos computadores, com diferentes horizontes e graus de detalhamento define, em ordem crescente de custo, uma lista das usinas que devem ser demandadas para atender toda a carga conectada no sistema.
O custo de acionamento da última usina, diga-se, portanto, a “usina marginal”, forma o CMO dentro do que conhecemos como ordem de mérito (para despacho).
Com base no CMO, é definido o Preço de Liquidação das Diferenças (“PLD”), que é, com efeito, o preço do mercado de curto prazo no país.
Ao modelo acima descrito, consolidou-se a nomenclatura do “despacho por custo”.
Ainda de característica acentuadamente centralizada (frise-se, até os dias atuais), onde o operador do sistema determina o fator hidrológico por modelos computacionais de otimização e, assim, minimiza o custo total de produção, por meio de uma ordem estratificada de despachos das usinas.
Sendo assim, não é demasiado afirmar que, nesse molde, é competência de uma única entidade – o ONS, no caso brasileiro – gerenciar uma enorme quantidade de informações sobre cada agente relevante, bem como parâmetros que comportam muita imprevisão, como meteorologia, demandas futuras contra cenários de oferta e outros.
Portanto, para gerenciar todo o Sistema Interligado Nacional (“SIN”), o ONS tem papel preponderante na gestão integrada e na busca incessante pela dita otimização.
Com tais características, o despacho por custo, mesmo que busque o melhor embasamento técnico, não alcança a totalidade de riscos dos agentes e promove, em alguma proporção, assimetrias e distorções.
3. Preço por Oferta
E, se, ao invés de se determinar o sequencial das usinas a serem utilizadas por meio da modelagem probabilística computacional, fossem adotadas ofertas de geração em âmbito competitivo?
Sob esse modelo, a formação de valor pelos “bids” de geração seria adotada para cotejar as curvas de produção e preço dos geradores concorrentes vis-à-vis as cargas elegíveis em suas exigências – que se incumbiriam de propor curvas de consumo e respectivo preço para o mesmo período.
O processo de competição seguiria o racional econômico com o qual já se acostumaram os players setoriais.
Uma das maiores vantagens do preço por oferta, quando comparado com o despacho pelo custo (modelo atual), é que os agentes podem utilizar sua própria assunção de risco para definição de sua oferta de geração ou consumo e, desse modo, formatar o sistema com menos intervencionismo.
Esta diversidade contribuiria para uma operação mais robusta e para a cobertura de todas as dimensões da precificação, produto a produto, certame a certame.
Em competição, os mecanismos de formação de preços por ofertas tenderiam a produzir maior eficiência econômica. Isto, de forma simplista, poderia ser traduzido pelo seguinte enunciado: os agentes de geração seriam incentivados a ofertar seus custos marginais de produção.
E os preços seriam determinados entre fases muito estreitas: primeiramente, teríamos as valorações do comprador marginal e as do ofertante marginal.
Depois, restaria patente que as determinações dos preços seriam diferentes em cada polo. Cada parte atribuiria um valor menor ao bem que recebe em relação àquele do qual abdica.
A relação de troca – isto é, o preço – não seria o produto de uma igualdade das valorações feitas pelos agentes, mas, ao contrário, é resultado da linha média de discrepância entre essas valorações. Assim funciona a teoria econômica, nos termos clássicos de uma negociação
4. Conclusão
Estabelecendo conexão com a introdução deste texto, não se deve esquecer que na época do RESEB (Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico) quando o saudoso Lindolfo Paixão elencou a “tríade legal da reforma” – Leis nº 8.987/95, n° 9.074/95 e nº 9.427/96 – como principais balizas evolutivas, o distanciamento da tarifa pelo custo pela adoção do regime de tarifa-teto soava como um pecado mortal aos olhares mais anacrônicos.
No entanto, o mercado livre prosperou, a sustentabilidade do segmento se confiabilizou e seu marco legal, cujas bases se assentaram com a Lei nº 10.848/04 e Decreto 5.163/04, seguiu respaldando e recepcionando as novas tendências.
Por isso, é cediço que o Projeto de Lei nº 414/2021 (da modernização do elétrico) – em vias de aprovação no Congresso, traz os elementos mais disruptivos em discussão na atualidade, pois para além das questões conjunturais, aguarda-se a vinda de uma reformulação estrutural, circundando o elemento mais importante de todos os mercados, qual seja: a formação de preço.
É chegado então o nosso momento do preço por oferta no setor de energia? Caminhemos para tal.
Advogado com 20 anos de experiência no setor elétrico, Daniel tem especialização em Business Law e Direito de Energia. Professor convidado na FIA Business School – USP para o módulo de “Legislação do Setor Elétrico” no Curso de Gestão de Ativos de Energia e Ex-gestor regulatório de multinacionais de energia.