Um mundo sem petróleo é o mito da atualidade

Por José Alexandre Altahyde, professor no departamento Eppen da Unifesp

Começamos este texto dizendo que, nestes dias, o princípio de se ter descarbonização da economia internacional é hipótese distante, um mito mesmo. Porém, isso não significa dizer que um dia não haja menos uso de petróleo, gás natural e carvão mineral na produção mundial de mercadorias, transporte e no processamento de recursos naturais. Tudo depende do andamento que a ciência pode dar aos combustíveis sintéticos. Quem sabe um dia haverá a era para o barateamento do hidrogênio e a massificação do etanol.

Os fundamentos do mito não são, obrigatoriamente, simples inspirações ou desejos desenraizados. No decorrer da história, das investigações políticas sobre a natureza do homem, o mito foi encontrado no Cristianismo como força motivadora em um mundo no qual os(as) fiéis pudessem ser elevados(as) ao encontro do Pai Eterno, desde que não fugissem de determinados mandamentos — princípio também visto no Islamismo e Judaísmo.

Da mesma forma, o mito foi encontrado no movimento comunista ao findar o século XIX. A salvação da classe operária estaria na revolução proletária, contra a ordem capitalista — uma transformação total da vida socioeconômica sobre a Terra que teria o poder de reiniciar a história sob novos valores. Mas o importante a sublinhar nesse assunto é que para se realizar os objetivos do mito não pode haver data marcada ou esperar resultados no curto prazo.

O mito, para ser concretizado, necessita de trabalho de longo prazo, sem data pré-determinada, e não aceita voluntarismo. Em outras palavras, não são convenientes ações individuais, de governantes, militantes, burocratas, intelectuais ou empresários(as) que não estejam relacionados com a prática da vida, da realidade propriamente dita. Decisões desse tipo são contraproducentes e seus resultados, geralmente, atrasam ou bloqueiam os desejos do mito.

Pois bem, esse descompasso, de caráter político e econômico, vem ocorrendo desde abril de 2020, quando se percebeu que a pandemia de coronavírus vinha para ficar por um bom tempo, e provocaria efeitos nas relações internacionais que perturbariam nossa compreensão sobre essa questão. Logo de início, a economia internacional parou em grande parte dos países, inaugurando um período cuja compreensão ainda está aberta para análises.

Até a China, chamada a “fábrica do mundo”, teve de aceitar a premissa de que se a produção estacionasse e se o(a) trabalhador(a) ficasse em casa, por certo tempo, isso poderia ajudar o mundo a sair das complicações da pandemia. Na verdade, o que a China havia feito nada mais era que seguir, ainda que a contragosto, sugestões dos Estados Unidos e, principalmente, da União Europeia, que rapidamente determinaram os lockdowns como possíveis instrumentos de política sanitária, confiáveis e urgentes para os novos desafios da humanidade.

Como se houvesse uma lei da natureza, a relativa paralisação da economia internacional promoveu, mesmo sem propósito, a premissa (o mito), de que a descarbonização viria para ficar. Se a produção mundial parou em grande parte no mundo, nada mais crível e inteligente do que suspender voluntariamente o consumo de hidrocarbonetos: petróleo, gás natural e carvão mineral — embora o carvão não seja hidrocarboneto para o pessoal da Geologia; mas o encaremos assim para fins de nosso argumento. Em decorrência disso tudo, a produção de hidrocarbonetos também descera bastante por falta de consumo.

Então, aproveitando o ensejo, a descarbonização seria nosso Santo Graal da questão ambiental planetária: menos queima de combustíveis fósseis, menos emissão de CO2 na atmosfera. Portanto, um passo a mais no combate ao aquecimento global que se tornou o problema número um da humanidade, ao menos na percepção de setores mais intelectualizados e cosmopolitas do Ocidente.

Nessa toada, a premissa da descarbonização, de usar menos hidrocarbonetos na medida do possível, passou a ser também a agenda dos países industrializados, do Hemisfério Norte. Os Estados Unidos, sob o governo democrata de Joe Biden, praticamente haviam posto o petróleo como elemento nocivo da sociedade norte-americana. A parcial diminuição de novas prospecções no Golfo do México e no Alasca e a maximização do gás de xisto (das jazidas de Marcellus em território estadunidense e do Canadá) seriam as boas novas daquela administração que pensara combater o aquecimento global com a marginalização dos combustíveis fósseis.

Do outro lado do Atlântico houve a mesma manifestação carregada de virtude. Bruxelas, centro da integração regional europeia, havia privilegiado o desejo alemão para que a Europa entrasse no processo do green power, da energia renovável.

Duas explicações: o país atuou a favor da Alemanha por conta da decisão que Berlim tivera, nos primeiros anos do atual século, para que as usinas nucleares fossem paulatinamente desligadas como resultado dos acordos entre o Partido Verde e o Social-Democrata, que havia adentrado no comando da Chancelaria. Devemos também explicar que usamos o termo ‘processo’ em virtude de a Alemanha não ter apresentado nada como suficiente em substituição a hidrocarbonetos ou à energia nuclear.

O que o governo poderia fazer em alto grau, e fez, foi empregar o gás natural russo, de Vladmir Putin, para movimentar a maior economia da Europa. O energético do Leste seria considerado meio de transição para algo mais avançado ao se tratar de qualidade ambiental; um insumo que liberaria menos CO2, apesar de ser carburante.

O que o Velho Continente tencionava fazer, dentro do processo de substituição das antigas energias, era contar com nova tecnologia de energias renováveis, que tivesse condições de dar conta da grande quantidade de insumos necessários para potências industrializadas. Energia eólica, solar, álcool combustível de beterraba branca e biodiesel haviam se tornado os energéticos da vez, com promessa de lograrem segurança energética à Europa. Enquanto essa nova era não chegasse, o gás natural russo deveria ser importado em grande quantidade.

Além da questão ambiental, o objetivo da União Europeia poderia ser, também, pois não o declarou efetivamente, escapar da dependência de petróleo proveniente do Oriente Médio. Por ser região altamente instável politicamente, e por concentrar mais de 60% das reservas mundiais de óleo, os países europeus pensaram trocar uma dependência mais complexa por outra, menos difícil, por se tratar de país governado por plataforma estável, apesar de tudo: a Rússia.

O plano empregado por governos revisionistas, do sistema internacional de energia, baseado em hidrocarbonetos, conseguiu se manter até este primeiro semestre de 2022, com o desdobramento da guerra entre Ucrânia e Rússia. A iniciativa do governo Putin para blindar seu ‘estrangeiro próximo’ dos assédios da Otan, o que envolve a Ucrânia como Estado-tampão, abriu a caixa de pandora da geopolítica europeia, com irradiação tanto para a América quanto para a Ásia. Estados Unidos e China seriam envolvidos, mesmo que indiretamente.

Nessa guerra por procuração, na qual Washington procura enquadrar a Rússia ao jogar mais armamentos na Ucrânia, da mesma forma que a Otan apoia o governo de Kiev, passou a haver, aos poucos, aquecimento da economia internacional, que teve seu retorno na China, como era de se esperar. Por vez, a crescente necessidade energética chinesa impele para que os grandes produtores de petróleo aumentem a produção o mais rápido.

O problema é que no período de paralisia da economia internacional, em função da pandemia, parte da infraestrutura petrolífera ficara em desuso e perdera condições de ser acionada em ritmo de urgência.

É como se houvesse uma letargia no mundo do petróleo e agora tivesse que ser despertado com água na cabeça. Depois de meses sem alta produção de óleo, a infraestrutura tem que recomeçar a bombear o produto para dar conta da crescente necessidade apontada pela China, Índia e demais países de recém-industrialização do sudeste asiático.

A suspensão de energia exportada da Rússia, devido aos boicotes ocidentais, a marginalização de novas explorações de óleo em território norte-americano e a animação econômica da Ásia revelaram que os planos green power não passariam de inocências carregadas de virtude em busca de um mundo melhor, capitaneados por elites governamentais, intelectuais e empresariais que não mais pensavam as relações internacionais sob o signo do poder. A ironia disso tudo é que a própria Europa, lar intelectual da geopolítica e da realpolitik, havia se prestado a ser a fonte dos desejos inalcançáveis. Seria, então, o green power pressuposto de gente mais que moderna e rica?

Os países malvistos de antes, grandes produtores de petróleo do Oriente Médio ampliado, com extensão para a Venezuela, de Nicolas Maduro, passaram a ter imagem melhorada pelo peso exercido pelo petróleo na economia global. Seus nomes foram limpos pela crise de energia. Os grandes centros financeiros apelam para que Arábia Saudita, a começar, prospecte mais carburantes para não matar os países industrializados de inanição.

Uma das consequências de tais manifestações de bondade foi a reativação de usinas termoelétricas a carvão. Matéria-prima que outrora fora amaldiçoada pelo alto teor poluente e, por isso, deixada de lado, entraram em atividade na Europa para dar conta das carências que não podem ser cobertas somente com energia verde, renovável. Será que a questão ambiental, tão cara para União Europeia e Estados Unidos perdeu a importância que exercia até 2021?

Isso porque um traço conveniente do carvão mineral é que ele pode ser bem encontrado na Europa e nos Estados Unidos, cortando um pouco a dependência dos carburantes importados. Esse elemento ainda é o mais numeroso de todos e o mais barato para se explorar. Dessa forma, caso a importância ambiental se mantenha, dirão que o problema deve ser do Brasil, porque desmata a Amazônia, e não daqueles que usam a pedra poluente.

Enquanto isso, por não haver alta produção de petróleo, os preços dos combustíveis aumentam muito. Sobe o custo de vida nos países mais pobres, e até para a classe média europeia e norte-americana, acostumada com o conforto promovido pela energia barata do petróleo, gás natural e carvão. Aumenta o custo da alimentação por conta dos transportes e dos insumos agrícolas que dependem de petróleo para sua confecção: diesel e fertilizantes. Assim, se a promessa de um mundo melhor pela descarbonização estava ao alcance das mãos, o que se conseguiu até agora foi instalar o desânimo e a desconfiança na ideia de que a pobreza tem salvação. Aliás, no atacado, quem perde mais é o pobre.

 

*Artigo escrito por José Alexandre Altahyde, professor no Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

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