Ao ensejo da costumeira brandura, o leitor desta coluna vai desculpar os óbvios trocadilhos dispostos no título deste artigo pelos enunciados que seguirão, logo em sequência, para introduzir nossos tópicos:
“A liberdade custou muito sangue e muita agonia para hoje ser entregue sob o preço barato da retórica” – Thomas Sowell [1].
“Não é crime ser ignorante em economia, que consiste, afinal, numa disciplina específica e que a maioria das pessoas considera uma “ciência sombria”. Embora seja totalmente irresponsável ter uma opinião alta e vociferante sobre assuntos econômicos enquanto se permanece neste estado de ignorância” – Murray Rothbard [2].
Em meio às expectativas da próxima Copa do Mundo e dos festejos de fim de ano, quem teve a comemorar, de fato, foram aqueles que almejam a prosperidade do setor elétrico brasileiro.
No final do mês passado, a Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia) já havia divulgado que o mercado livre de energia cresceu 20% em 12 meses (últimos). Ao todo, já se perfilaram 30.000 consumidores, aproximadamente, nessa crescente.
Hoje, o Brasil registra 471 comercializadores de energia – estes incumbidos de negociar 60% da energia comercializada no Ambiente de Comercialização Livre (“ACL”) e por 36% de toda a energia transacionada no país.
E para quem tinha dúvidas de que o segmento estava crescendo, teve sua ratificação em concreto, com sinalizações do próprio Poder Concedente; o Ministério de Minas e Energia publicou, no Diário Oficial da União do dia 28/09, a Portaria n° 50/2022, que, sinteticamente concede duas benesses aos migrantes:
- prerrogativa de que os consumidores categorizados como “Grupo A” (nos termos da regulamentação vigente) possam adquirir seu suprimento de qualquer fornecedor a partir de janeiro do próximo ano; e que
- possam se valer do dito benefício até mesmo aqueles consumidores individuais com a carga inferior a 0,5 MW, desde que, nesta circunstância, se façam representar por agente varejista perante à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
Desde a adoção da política, já há apontamentos técnicos indicativos de que cerca de 106 mil novas unidades consumidoras estão habilitadas a migrar para o mercado livre, oferecendo-os um “upside” em relação ao calendário então proposto pela Portaria MME n° 465/2019, segundo a qual, a partir de 2022, os consumidores ainda estariam adstritos à trava da carga para se declararem como aptas à solicitação de sua modelagem como livre.
E o entusiasmo da medida não se encerra na assertiva acima, uma vez que, 2 (dias) dias depois do anúncio acima disposto, o mesmo Ministério de Minas e Energia exarou a Portaria nº 690/GM/MME, responsável pelo lançamento da Consulta Pública nº 137/22 – destinada a coletar contribuições sociais à normativa que venha a prever a redução dos limites de carga para aquisição de energia no ambiente de comercialização livre pelos clientes conectados em baixa tensão.
É natural que os pressupostos da medida são os mais sublimes, uma vez que proporciona uma dotação de autonomia mais ampla ao consumidor (de maneira que este possa gerenciar suas preferências) – e, consequentemente, tenha a possibilidade de optar por produtos que atendam melhor seu perfil de consumo, bem como os horários em que necessita consumir maior ou menor quantidade de energia.
Também obedece à lógica econômica de que a concorrência tende a proporcionar preços mais atrativos, melhorando a proxy da eficiência econômica, além de seguir o caminho evolutivo natural dos mercados, se nos pusermos a fazer um exercício de “Direito Comparado” ao redor do globo.
Entretanto, não nos remete aos melhores desígnios da responsabilidade – notadamente por entendermos a lógica setorial de dois ambientes de comercialização que seguem subsistindo – que manifestemos um apoio incondicional e sem embasamento lógico nas (louváveis) iniciativas em comento. Certamente, não merece prevalecer a ausência de cognição dos fatores que se comunicam o mercado cativo e o livre. Vamos ilustrar este ponto com mais objetividade:
Buscando subsídios na matemática setorial, atinge-se a constatação de que o preço médio do Ambiente de Comercialização Cativo (“ACR”) corresponde à R$ 350/MWh no mix. E não atenua a circunstância de que a Conta de Desenvolvimento Energético (“CDE”) que, nos idos dos anos 2000 extravasava (em pouco) a cifra de R$ 2 BI, no cenário atual, ostenta a paquidérmica monta de R$ 32 BI.
De outra feita, o preço médio dos contratos do mercado livre não ultrapassa a faixa média de R$ 200 BI. Trata-se apenas de uma pequena comparação entre os ambientes de comercialização que sequer está procurando remeter a questão dos subsídios que oneram o ACR (para não formatar uma equação medonha).
O que se pretende dizer, ao fim e ao cabo é que, os estudos (de todas as medidas) que oferecem liberalidade ao consumidor deveriam ser sopesados e formatados inteligentemente com toda a problemática dos contratos legados, dos subsídios mal endereçados, e finalmente, conjugados com as dimensões de mercado e com os horizontes de formação de preços.
Com efeito, não há o que se reprimir acerca dos caminhos que promoverão a liberdade do mercado energético. Há sim, que se refletir de forma multidisciplinar e transversal, como estabelecer o equilíbrio salutar de um structo setorial que não seja indutor de assimetrias. Mas, ao mesmo tempo que não conjecture um módulo repressor de liberdades/prerrogativas.
[1] Thomas Sowell. Expoente da escola austríaca de economia, que ganhou notoriedade como intelectual, tendo escrito mais de 30 livros e lecionado em Cornell, California, UCLA, Stanford, entre outras instituições.
[2] Murray Rothbard. Expoente da escola austríaca de economia, tendo sido figura central no movimento libertário americano do século XX. Ele escreveu mais de vinte livros sobre teoria política.
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Advogado com 20 anos de experiência no setor elétrico, Daniel tem especialização em Business Law e Direito de Energia. Professor convidado na FIA Business School – USP para o módulo de “Legislação do Setor Elétrico” no Curso de Gestão de Ativos de Energia e Ex-gestor regulatório de multinacionais de energia.